sábado, 20 de dezembro de 2008

POSICIONAMENTO INACEITÁVEL DA OAB PAULISTA EM RELAÇÃO À NATUREZA JURÍDICA DOS PRIMATAS NÃO-HUMANOS

Caso do habeas corpus em favor de dois indivíduos chimpanzés, relatado pela Folha de S. Paulo

São Paulo, 11 de dezembro de 2008.

Em nada nos surpreendem mais estas afirmações da OAB de São Paulo, por intermédio de seu presidente e demais dirigentes, numa seqüência interminável de demonstrações reacionárias e de defesa do status quo pseudo-democrático. O que nos surpreende de verdade é a falta de uma oposição articulada dentro da Ordem, oposição quanto às posturas éticas, políticas, mas sobre tudo uma oposição que vise a colocar os juristas do Estado na vanguarda dos movimentos sociais que lutam por direitos fundamentais, individuais e coletivos. Parece-nos que todos só se preocupam consigo mesmo, com seus grupos, ou com seus escritórios e atividades econômicas. Assumimos, a cada dia que raia, mais e mais a indiferença frente aos problemas alheios, sem perceber que o que atinge ao outro, um dia também nos atingirá, e aí, evidentemente, estaremos sozinhos.
Desta vez, trata-se de pedido de habeas corpus em favor de dois chimpanzés, protocolado no STJ. De acordo com a reportagem publicada na Folha de São Paulo (Revista da Folha #834, de 14 de setembro de 2008, p. 20-24), o Presidente da OAB Paulista, falando em nome da Entidade, ao que se depreende, afirmou peremptoriamente que “Não me parece que o habeas corpus seja o mecanismo jurídico apropriado nessa discussão. É uma medida adotada com a intenção de sanar um constrangimento imposto a um ser humano. Ou seja, seu destinatário final é alguém, não um bicho”, além de concluir, segundo a reportagem, que bichos não são sujeitos de direito.
A afirmação do respeitável Presidente de nossa seccional peca, talvez, pela desinformação, sem se atentar ao fato de que este assunto está em crescente discussão, inclusive no Parlamento Espanhol, havendo precedente, na justiça baiana, de recebimento de habeas corpus em favor de uma chimpanzé que se encontrava encarcerada num zoológico. Ou talvez pelo afã da defesa intransigente da ordem posta, mostrando a faceta reacionária da OAB paulista – aquela que, à primeira vista, nem sequer discute a questão - contra o reconhecimento de direitos fundamentais das minorias destituídas de poder; além de sua faceta evidentemente criacionista “alguém, não um bicho”, como se animais não fôssemos todos nós.
Por sinal, difícil não é imaginar esta postura de defesa do status quo contra o direito fundamental das minorias em outros tempos históricos: na Grécia Antiga, “alguém, não um estrangeiro”; no Brasil Imperial, “alguém, não um escravo”; no mundo ocidental, em boa parte do século XX, “alguém, não uma mulher”; e em muitos lugares, nos nossos tempos, “alguém, não um pobre”. A mudança de paradigmas vem por meio da contestação destas ordens instituídas, e não da sua repetição mecânica.
O centro do mérito da questão colocada, na verdade, trata do princípio constitucional da isonomia. Não há nenhuma diferença suficientemente relevante entre o homem e os outros grandes primatas, cientificamente falando, que justifique o reconhecimento de direitos fundamentais apenas para os da espécie humana, dominante. Inclusive, não é de agora que está provada a capacidade - de todos os outros grandes primatas - cognitiva, de comunicação e de expressão - semelhante a do homo sapiens. Aliás, só não aprendem a falar como o homem por uma questão estrutural do aparelho respiratório – e não cerebral, uma vez que conseguem aprender a linguagem de sinais. Falar é tão importante assim? Então tiremos o direito de peticionar dos mudos!
Aliás, se o critério para ter direitos fundamentais é a razão, a capacidade cognitiva, esqueçam o direito das crianças pequenas, das pessoas com retardamento mental e, principalmente, dos nascituros: todos estes possuem menos capacidade cognitiva do que gorilas, chimpanzés, bonobos ou orangotangos.
Quanto à questão da representatividade processual, o mesmo se aplica, uma vez que já é prevista a assistência do Ministério Público para defesa dos animais não-humanos, assim como de todos os outros incapazes.
Apegar-se à mera definição científica de diferença de espécies, dando-lhe significado muito mais amplo do que realmente possui, para explorar, torturar e não reconhecer direitos de terceiros - tratando os diferentes como coisas, muito além dos limites de sua desigualdade - é repetir os mesmos erros historicamente consolidados, em virtude de cor da pele, etnia ou sexo.
E não são lógicos argumentos baseados em falta de racionalidade, consciência, ou alma, enfim, em falta de humanidade: índios, negros e mulheres também já foram “acusados” de não possuírem nenhum desses atributos, como justificativa daqueles que queriam dominá-los e explorá-los, econômica e moralmente. Esta sempre foi a argumentação dos pequenos grupos – detentores do poder - de homens, livres, brancos, europeus, para impor seus interesses e sua vontade frente os mais fracos.
Homens também são animais. Mais que isso, homens também são primatas. Explorar os outros primatas, não pertencentes à espécie humana, simplesmente por não pertencerem à nossa espécie, sem nenhum outro motivo razoável, é o mesmo que humanos explorarem outros humanos por diferenças étnicas, ideológicas ou sexuais; são todas diferenças irrelevantes para a concessão ou não de direitos fundamentais. Ou então assumamos logo o criacionismo e que somos superiores porque Deus assim disse, e deixemos de lado o suposto caráter laico do Estado e nossa hipocrisia.
Vendo o exemplo espanhol, vamos alguma vez na história tomar a vanguarda do justo, ou continuaremos com nossa pecha exploratória e vergonhosa, sempre sendo os últimos a acabar com a escravidão?
De acordo com a reportagem da Folha de São Paulo a “Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entende que a lei dos homens é para os homens. ‘O artigo 5º da Constituição em seu inciso 68 prevê como destinatário final do HC alguém, aqui a pessoa natural e não um animal’, afirma o presidente da Comissão do Meio Ambiente da OAB, Carlos Sanseverino”. Parece-nos que o respeitável Doutor Sanseverino se esquece que a constituição prevê também o principio da isonomia – e o exercício hermenêutico na sua aplicação -, a proteção da fauna, e não define, em nenhum momento o “alguém”, jamais fala em espécie humana excluídos todos os outros primatas, alem de ser extensiva ao máximo no concernente a diretos fundamentais. Esquece-se que o Direito é dinâmico, assim como sua interpretação. Se hoje, no Brasil, a lei dos homens é para homens, ontem a lei dos brancos era para os brancos, e isso certamente colaborou com a continuidade da escravização dos homens negros.
A história dos direitos fundamentais é de inclusão, segue uma lógica inclusiva, graças a passos históricos e movimentos que ousam romper com a ordem posta, esta, por sua vez, exclusiva. Seguindo a postura inerte da OAB Paulista, que nem ao menos possibilita a abertura da discussão de um tema tão pungente, criando o ambiente para a quebra de paradigmas, continuaríamos na “democracia” grega, com meia dúzia de cidadãos dentre milhares de habitantes.
De fato, não são homens, são animais. Não são brancos, são negros. Não são homens, são mulheres. Não são ricos, são pobres. Sim, tudo isso é verdade. A pergunta que fica: e daí?

Carlos A. Bedin Cipro, OAB/SP 209.470 – Presidente do piloto para fundação da Associação Brasileira de Advogados Animalistas. Contatos para formação da associação carloscipro@gmail.com

Um comentário:

  1. Uau, que legal! :)
    Não sei responder a pergunta, ao contrário, faço citação de Drauzio Varella (livro Macacos, Publifolha) para, talvez, complementar o questionamento. Já que a ciência gosta de dados científicos, palavras de um cientista: "O orangotango é o mais velho, apareceu há 12 milhões de anos. Depois nasceu o gorila (8 milhões), seguido pelo homem (5 milhões). Os irmãos mais novos, chimpanzés e bonobos, são gêmeos não-iguais, nascidos há 3 milhões de anos.
    Veja agora os besouros. Há mais de 300 mil espécies desses insetos (alguns acham que há mais de 1 milhões, mas, apesar das diferenças de cor, tamanho e formato do corpo, para nós são todos iguais: besouros. Em termos genéticos, no entanto, a diferença de uma espécie de besouro para outra pode ser muito maior do que a que nos separa dos quatro grandes primatas. Com os chimpanzés e bonobos, por exemplo, compartilhamos mais de 98% dos genes. A explicação para serem eles quem são e nós quem somos fica por conta de menos de 2% dos 100 mil genes que constituem nosso patrimônio genético.
    É bem provável que um besouro, ao olhar para nós e os chimpanzés, conclua que a única diferença está nas roupas que vestimos. A semelhança é de tal ordem que, se empregássemos para os primatas o critério científico usado para classificar os pássaros, por exemplo, o homem (Homo sapiens) faria parte do gênero Pan, o mesmo dos chimpanzés (Pan troglodytes) e dos bonobos (Pan paniscus)."

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